A Irlanda legalizou o aborto em seu território em 25 de maio de 2018, após um referendo realizado no país. Aspectos históricos e culturais contribuíram para a derrocada da 8ª Emenda Constitucional Irlandesa
A votação histórica teve mais de 1,4 milhão de votos com 66,4% dos irlandeses votando a favor de repelir a Oitava Emenda da constituição, que, em vigor desde 1983, garantia a igualdade de direito à vida entre o feto e a gestante, sendo uma das leis antiaborto mais rigorosas do mundo.
Este artigo visa esclarecer alguns pontos importantes sobre a luta da mulher irlandesa por igualdade de direitos.
Mais de 64% da população compareceu às urnas para opinar sobre o tema, sendo uma das participações recordes em referendos no país. Só por aí, nota-se a relevância do referendo para a população irlandesa.
Primeiramente, é importante destacar que a legislação irlandesa em vigor antes do referendo consistia em uma das leis antiaborto mais restritas do mundo, banindo o procedimento e obrigando médicos a considerarem a vida da mãe e do feto com o mesmo peso sob a lei.
Portanto, uma irlandesa que interromper uma gravidez — seja ela indesejada, seja para preservar a sua própria saúde — poderia ser condenada a até 14 anos de prisão.
Em 1992, após um referendo, duas emendas foram introduzidas à legislação irlandesa visando flexibilizar, de certa forma, o acesso ao aborto.
Uma delas previa que a proibição do aborto não poderia limitar a liberdade da gestante em viajar para fora da Irlanda. Enquanto a 14ª emenda dispõe sobre o livre acesso a informações sobre o aborto em outros países.
Com o referendo, dois terços da população votaram a favor da anulação desta rigorosa legislação. O que, segundo o primeiro-ministro da época, Leo Varadkar, não apaga a violenta dor de décadas de maus-tratos às mulheres irlandesas. Entretanto, garante que ela não precisa ser revivida.
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Nova legislação entrou em vigor, permitindo o aborto durante as primeiras 12 semanas de gravidez e, em casos excepcionais, comprovados por dois médicos, até 24 semanas.
Segundo o ministério da saúde irlandês, a medida também garante menos gestações de risco e a inclusão de educação sexual nas escolas.
Devido à dominação da Igreja Católica por séculos no país, a educação sexual nunca foi assunto no meio familiar e, muito menos, nas escolas. E essa realidade ainda perdura, especialmente, no interior no país.
De acordo com a diretoria da National Maternity Hospital, é completamente falso alegar que a partir da nova lei os abortos ocorrem a qualquer momento, inclusive até o final da gravidez.
A nova legislação dará às mulheres o direito de escolha e, se optarem por realizar o procedimento, o farão de forma segura.
A herança que a igreja católica deixou na Irlanda nos últimos séculos é considerada traumática pelos irlandeses. Para quem esqueceu de pesquisar, pelo menos um pouquinho, sobre a dominação cristã na Irlanda, vale voltar aos livros de História Mundial.
Uma das principais bandeiras defendidas pela turma do YES foi, justamente, a luta secular contra a dura dominação da Igreja Católica e a desvalorização da mulher na sociedade.
Um dos capítulos mais tortuosos na História irlandesa veio à tona há alguns anos, com o pedido de desculpas oficial do Governo Irlandês contra os abusos cometidos a jovens irlandesas por anos no país.
As Magdalenes eram instituições mantidas pela igreja que, entre o século 18 e 20, abrigavam mulheres com deficiência física e mental, rebeldes, mães solteiras e suas filhas, vítimas de estupro e aquelas que se acreditavam possuir caráter duvidoso, como as prostitutas. As mulheres sofriam todo tipo de maus-tratos, até mesmo abuso sexual.
Inicialmente, a missão dessas instituições era “reabilitar” as mulheres de volta à sociedade, mas, no início do século 20, as casas se tornaram punitivas e parecidas com uma prisão.
Na maioria dos asilos, as internas eram obrigadas a realizar intensos trabalhos físicos, incluindo lavanderia e costura.
Estima-se que 30 mil mulheres passaram por essas instituições na Irlanda, sendo que a última lavanderia Madalena encerrou atividades no país apenas em 1996. Então, percebe-se que essa é uma história mais recente do que muitas pessoas imaginam.
Estatísticas mostram que, desde a década de 1980, mais de 170 mil mulheres irlandesas viajaram para outros países para interromper suas gestações.
Em 2016, dados do departamento de saúde britânico mostram que 3265 irlandesas realizaram o procedimento em clínicas do Reino Unido. A maioria dessas mulheres, 85%, tem entre 20 e 39 anos.
Vale ressaltar que viajar para o Reino Unido para interromper uma gestação é um procedimento caro, que, inúmeras vezes, está fora da realidade de muitas irlandesas.
Neste caso, a opção para tais mulheres é adquirir ilegalmente pela internet pílulas abortivas e realizar o procedimento sem orientação médica, colocando suas vidas em risco.
O departamento de saúde irlandês alertou para o preocupante dado de que, em cinco anos, houve um aumento de 64% no número de mulheres irlandesas que adquiriram o medicamento online.
A vitória do sim e a celebração da população com o resultado do referendo está longe de ser uma celebração pelo aborto. A comemoração permeia questões ligadas aos Direitos Humanos, negligenciados à população feminina irlandesa desde os primórdios.
A vitória é por conta do reconhecimento dos seus direitos em um país onde, até pouquíssimos anos atrás, o uso de métodos anticoncepcionais, por exemplo, era altamente recriminado.
As famílias irlandesas se resumiam a 12 ou mais filhos, já que o Estado e a Igreja, por questões morais, negavam às mulheres o acesso aos métodos contraceptivos.
São inúmeros os casos de mulheres que passaram por mais de 20 gestações interrompidas naturalmente, por problemas de saúde como endometriose e miomas. Mulheres que passaram por traumas imensuráveis, física e mentalmente, por não terem o direito de evitar a gravidez.
Em 2013, o aborto foi permitido, pela primeira vez no país, apenas quando os médicos considerassem que havia risco de suicídio ou quando a vida da mulher estivesse em perigo devido a complicações.
A lei foi criada após o caso de Savita Halappanavar, uma mulher indiana que morreu em 2012, depois de médicos irlandeses terem lhe negado um aborto.
Savita havia ido ao hospital com muitas dores nas costas e com indícios de aborto espontâneo. Os médicos se negaram a fazer o procedimento, alegando a dura legislação irlandesa e, também, o catolicismo.
O resultado do referendo é também um reflexo de que mais de dois terços da população tem se sensibilizado com o alto índice de mulheres que morreram em consequência de gravidezes de risco.
Isso nos deixa um exemplo para o futuro. Lembrar sempre que as questões relacionadas às decisões de um país estão intrinsecamente ligadas à sua História, que deve ser respeitada e, mais importante, conhecida, já que somos apenas visitantes por aqui.
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