A dificuldade em encontrar uma residência para alugar na Irlanda é enorme. Quem chega à Ilha para fazer intercâmbio e iniciar uma nova vida se depara com uma situação caótica: a crise de acomodação na Irlanda.
A falta de vagas não é um problema novo, mas vem aumentando ao longo dos anos e atinge não só os imigrantes, mas os próprios irlandeses. E quem consegue alugar tem que arcar com um valor altíssimo mensal, que, em alguns casos, chega a ser a metade do salário do locatário.
Entre brasileiros e outros estrangeiros que fazem intercâmbio na Irlanda, a locação em conjunto é a solução mais fácil para conseguir bancar os valores de aluguel. Mesmo assim, conseguir um quarto compartilhado ou um single room em uma casa com mais intercambistas está mais difícil e mais caro — e temos que lidar com quartos cheios de gente em uma mesma residência.
Vamos falar sobre acomodação? Conversamos com quem está nessa situação e coletamos alguns dados para tentar entender toda essa crise na Irlanda.
A falta de moradia no país não é uma questão atual. O E-Dublin publicou, em 2018, uma reportagem sobre a crise de acomodação na Irlanda, e os protestos aconteceram nas ruas da capital irlandesa naquele ano.
Hoje, no entanto, a situação parece estar pior. O número de pessoas à procura de um lugar para morar é gigante. E quem encontra uma vaga, muitas vezes, não tem como pagar.
Nas redes sociais, estudantes brasileiros que chegam para iniciar o intercâmbio têm relatado o problema e a busca incansável para resolvê-lo (leia mais abaixo).
A crise ainda afeta o preço do aluguel na Irlanda. Apesar do congelamento do aumento da mensalidade durante o início da pandemia da Covid-19, o preço para alugar uma residência no país disparou em 2021.
O valor subiu, em média, 8,3% no país. De acordo com o RTB, no terceiro quadrimestre de 2021, a média de locação na Irlanda era de € 1.397 mensais. Isolando apenas Dublin, o valor sobe para € 1.916, 3,6% a mais que no quadrimestre anterior.
A média de aluguel de uma casa com três quartos no país é de € 1.362, sendo € 2.161 em Dublin.
Ainda segundo o relatório da RTB, o local mais caro da Irlanda para alugar é Stillorgan, em Dublin (€ 2.510), e o mais barato fica em Boyle, em Roscommon (€ 647).
Aliás, recentemente, o Numbeo divulgou um ranking de países mais caros para se viver e a Irlanda aparece na 16ª posição. Além disso, isolando apenas os valores de aluguel, o país fica na 11ª posição entre os mais caros.
De acordo com pesquisa feita pelo site Money.co.uk, a Irlanda ocupa o 10º lugar global entre países com o maior número de casas vazias. São 183.312 residências sem moradores na Ilha, o que equivale a 9,1% do total existente.
Mas como há tanta gente precisando de casas e há residências vazias?
O crescimento de imóveis para alugar temporariamente na Irlanda também pode ser visto como motivo para a crise de acomodação. Muitos landlords preferem despejar seus inquilinos e transformar suas residências em locais de aluguel temporário.
Com isso, o governo irlandês criou uma lei que passou a valer em 2019. Desde então, os proprietários não têm mais permissão para alugar temporariamente uma segunda propriedade a longo prazo. Ou seja, ele tem um limite anual de 90 dias para o aluguel de uma casa ou apartamento inteiros temporariamente e só poderão alugar por 14 dias ou menos de cada vez.
Vale saber se a lei é fiscalizada e cumprida.
Segundo reportou a RTÉ, em dezembro de 2021, havia 1.349 propriedades disponíveis para aluguel em 16 áreas da Irlanda, incluindo as principais cidades.
Destas, apenas 148 (11%) se enquadravam nas categorias HAP (Housing Assistance Payment), esquema de auxílio no pagamento de aluguel a pessoas carentes. Isso representa 22% a menos que outubro de 2021 e 83% menos que junho de 2021.
Sem poder pagar o aluguel, famílias têm ficado sem lar na Irlanda. O número de famílias desabrigadas no final de 2021 foi 11% maior do que em 2020. Só em Dublin, 1.606 famílias ficaram desabrigadas em 2021, uma média de 30 novas famílias sem lar a cada semana. 786 crianças e suas famílias passaram mais de um ano vivendo em acomodações de emergência.
De acordo com a instituição Threshold, que auxilia inquilinos na Irlanda, quase 2.000 adultos e crianças foram impedidos de ficarem sem lar pela instituição no segundo semestre de 2021, 16% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Leia também: Quais são os direitos de quem paga aluguel na Irlanda
Outra pesquisa, dessa vez feita pela União de Estudantes da UCD (University College Dublin), em dezembro de 2021, mostra que estudantes estrangeiros também sofrem pela crise de acomodação na Irlanda com o pagamento das locações de quartos estudantis no país.
Segundo a organização, 55% dos estudantes pagam mais de € 750 por mês em aluguel, dos quais 53% relatam dificuldades em cobrir as suas despesas mensais relacionadas com a habitação. Outros 18% a referiram como extremamente difícil de pagar.
No geral, 43% dos alunos que responderam à pesquisa afirmam estar descontentes com sua situação de vida atual na Irlanda.
Os dados mais alarmantes, no entanto, estão a seguir: 41,79% dos pesquisados concordam que encontrar alojamento teve um impacto negativo na sua educação, enquanto 57% dizem que procurar alojamento teve um impacto negativo na sua saúde mental.
Quase metade, 46,19%, também afirmam que o processo de encontrar alojamento em Dublin foi muito difícil.
Nós já falamos sobre a crise de acomodação que vem assolando a Irlanda há anos, mas será que as restrições da Covid-19, as extensões de visto e a reabertura do país a estudantes podem ter a ver com a crise atual de acomodação? Vamos refletir.
Existe um ciclo natural do vai-e-vem de intercambistas na Irlanda. Antes da pandemia, todos os dias, chegavam dezenas de estudantes à Ilha para começar um intercâmbio e outras dezenas voltavam aos seus países de origem. Um intercâmbio pode variar de períodos mais curtos, como oito meses, até dois anos (duas renovações), chegando a um total de sete anos (tempo permitido para um intercambista estudar idiomas e emendar com um curso universitário na Irlanda).
Isso foi quebrado durante a pandemia da Covid-19. Com as várias restrições de vistos para estudantes de inglês e universitários, muitos estrangeiros deixaram de ir estudar no país, adiando a chegada para quando as restrições acabassem. Ao mesmo tempo, quem já estava na Irlanda pôde fazer renovações extras e permanecer no país, ganhando extensões de visto que vigoram até maio deste ano.
A partir do momento em que a Irlanda começou a receber novos estudantes universitários e novos estudantes de inglês, em setembro de 2021, uma grande quantidade de pessoas que adiou a vinda para a Irlanda começou a se preparar para embarcar ao mesmo tempo.
Muitos daqueles que já estavam aqui continuaram, por conta da extensão do visto, e isso gerou uma espécie de “overbooking” nas acomodações.
Segundo o apurado pelo E-Dublin, a busca pelo intercâmbio na Irlanda é tanta que as escolas de inglês estão com dificuldade de encaixar a quantidade de estudantes estrangeiros que ainda querem embarcar para o país.
Leia também: Acomodação na Irlanda: os desafios para encontrar uma vaga
A estudante Elisa Malta, 34 anos, natural de Franca (SP), mora na Irlanda desde abril de 2019 e já sentiu na pele a situação difícil da acomodação algumas vezes. Ela afirmou que chegou a pagar 500 euros de aluguel mais contas para dividir um quarto “minúsculo” com mais três meninas em uma casa com sete pessoas e apenas um banheiro.
“Naquela época, já era caro. Depois, com a pandemia, os preços baixaram”, ressaltou. Em 2021, Elisa precisou ir para o Brasil e teve dificuldades de passar a vaga de sua casa.
“Pois é, a situação era extremamente oposta, já que poucas pessoas estavam chegando ao país e muita gente saindo. Fiquei fora da Irlanda por seis meses e, agora, quando voltei, simplesmente não tem nada! Vagas temporárias, definitivas, compartilhadas. Realmente está muito difícil.”
Ela disse que está difícil conseguir vaga mesmo em locais afastados do centro de Dublin. “Está tão disputado que, quando você vê um anúncio, por exemplo, tem 70 comentários com pessoas interessadas e a oferta tem um preço altíssimo!”
Quando voltou do Brasil e precisando de uma vaga para ficar, Elisa apelou para os amigos. “Fiquei no sótão da casa, junto com as malas de todos os moradores, já que os quartos são pequenos e eles dividem duas pessoas por quarto”, explicou ela que, agora, está como temporária na casa de outra amiga. “Graças a Deus eles me acolheram até eu conseguir uma vaga definitiva.”
Segundo ela, os contatos e os amigos são essenciais, já que muitas pessoas passam a vaga por indicação. “A maior dificuldade de quem chega é não conhecer ninguém. Por isso, é importante ter um contato para facilitar as buscas antes de chegar, porque a galera que está aqui passando já tem pessoas interessadas”, disse.
“A minha sorte é que já tenho essa rede de contato, meus amigos estão me ajudando e consegui um lugar para dormir. Sou muito grata por isso! Eu tenho um lugar para ficar, mesmo que temporário, mas muita gente pode estar desesperada.”
Já dissemos por aqui que, desde muito tempo a Irlanda vem seguindo com essa crise na acomodação. Mas, na verdade, esse dilema está na raiz do nascimento do país.
No século 18, os britânicos, com a liderança de Oliver Cromwell, fizeram um grande extermínio em terras irlandesas. Enormes áreas de terra foram confiscadas, e os irlandeses foram banidos para outras terras. Esse movimento de um grande número de pessoas para fora de suas terras e a transferência delas para os ingleses ficou conhecido como Colônia Cromwelliana.
No século seguinte, a Irlanda seguia dominada pelos britânicos, que alugavam as terras para fazendeiros irlandeses poderem trabalhar. E adivinha? O aluguel era caríssimo! De tudo o que era cultivado, 80% era destinado à coroa britânica e 20% restavam aos locais.
Essa porcentagem pequena era usada para a produção de batatas, raiz que dava sobrevivência às famílias por serem mais fáceis de plantar e não tomarem muito espaço. Logo depois, houve o período chamado A Grande Fome (The Great Famine), em que um fungo atingiu justamente as plantações de batata e gerou a morte e migração de muitos irlandeses.
Estudantes e cidadãos realizando protesto contra a escassez na moradia em Dublin. Soa atual, não é? Mas foi em 1969.
Segundo mostra o arquivo da RTÉ, dezenas de estudantes se uniram ao Dublin Housing Action Committee (comitê da habitação), fundado pelo Sinn Féin, em maio de 1967. Eles fizeram um protesto pacífico em 18 de janeiro de 1969, na O’Connell Bridge (veja vídeo acima).
O comitê foi formado para dar resposta à falta de moradia, ao preço do aluguel e ao grande número de imóveis vazios na capital, organizando manifestações, resistindo aos despejos e ocupando casas e prédios vazios.
Recentemente, o governo irlandês lançou o Housing for All, um plano de habitação que inclui várias promessas para a área nos próximos anos, a serem concluídas em 2030.
O objetivo final do governo é que as pessoas possam “comprar ou alugar a um preço acessível”, oferecer uma “alta qualidade de vida” com “casas construídas em alto padrão e local adequado”.
A maior promessa é a construção de 33.000 novas casas por ano de 2021 a 2030. Porém, logo no primeiro ano, a Irlanda conseguiu entregar 20.433 novas casas, 12 mil a menos do que a meta anual.
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