– Senhor, me diga seu nome, telefone e endereço.
O tom intimidador do policial me deixou um pouco assustado. Era apenas o meu terceiro fim de semana na Irlanda e eu nem havia solicitado o visto de permanência no país. O paramédico até interveio a meu favor, mas não teve jeito. O moço de quepe anotou tudo em um pequeno caderno e pediu para que entrasse em contato na segunda-feira. Pela primeira vez na vida eu era responsável pela prisão de alguém e, mesmo assim, fui para casa dando gargalhadas.
Meu telefone havia tocado uma hora antes e identificara uma ligação de uma colega de sala. “Estranho”. Era final de balada e comíamos no Mc Donald’s na esperança de amenizar a ressaca do dia seguinte. Atendi chamando-a pelo nome. Do outro lado da linha, uma outra garota, em inglês, perguntava se eu conhecia a dona daquele celular.
– Ela está passando mal em frente a um pub. Você pode ajudá-la?
As duas irlandesas, de tão preocupadas, foram nos buscar. No caminho, explicaram que tentaram ligar para diversos números que estavam gravados no telefone, mas que eu havia sido o único a atender.
– Obrigado, obrigado, obrigado. Muito obrigado mesmo por terem me ligado.
A menina estava sentada na calçada, de cabeça baixa, encolhida, praticamente inconsciente. O chão completamente sujo tornava a cena ainda mais deprimente. Solidárias, as pessoas em volta ofereciam água. Em vão. Ela não se mexia.
– Ei, sou eu! O Leandro. Você está bem? Posso te levar para casa? Prefere ir para o hospital? Ei, ei, ei…
A melhor resposta que obtive foi um leve grunhido. A ambulância estacionou atrás de mim quando eu agradecia às irlandesas pela enésima vez. Elas haviam ligado para o 192 daqui. O paramédico – com cara de “lá vamos nos outra vez” – começou a sacudi-la. Ele tentou de tudo: gritou pelo nome, bateu palma, chacoalhou-a pelos ombros, assobiou. Finalmente ele segurou a nuca da garota e levantou a sua cabeça.
– NÃO É ELA! NÃO É ELA!
Imediatamente mandei o meu colega calar à boca.
– Calma! Vamos ver melhor.
– Ver melhor? Tá louco? É óbvio que não é ela. Cadê os óculos?
– Ela deve ter os deixado em casa.
– Cara, não é ela!
– Peraê. Vamos ver de novo e…. NÃO É ELA! NÃO É ELA! NÃO É ELA!
A polícia chegou dois minutos depois. O guarda revirou a bolsa da menina e encontrou outro telefone e os documentos de uma francesa. Mas ela parecia chinesa. De repente, ele começou a me fazer perguntas.
– Você tem certeza de que ela é brasileira?
– Não.
– Mas você disse que ela era sua amiga.
– A dona do celular que é a minha amiga.
– Você já viu essa menina na vida?
– Não.
– Então por qual motivo ela estaria com o celular da sua amiga?
– Não sei.
– Como você chegou aqui? O que faz na Irlanda? Onde mora? Quando volta pro Brasil? Estuda? Trabalha? Onde estava? Conhece as irlandesas que te ligaram? Blá, blá, blá…
Até mostrei a foto da dona do celular, mas o policial não estava muito disposto a confiar em mim. Usando o aparelho, ligou para o meu telefone umas três vezes. Impaciente, começou a interrogar a garota desconhecida.
– Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você?
A menina nem se mexeu. A noite terminou com ela passeando de viatura até a delegacia.
Assim que eu cheguei em casa, mandei uma mensagem para a minha amiga pelo Facebook:
“Acho que roubaram o teu celular ontem à noite. É uma longa história. A policia está com o aparelho e pediu para entrar em contato. A ladra foi presa. Bjs”.
Acordei no dia seguinte com o celular tocando. Era ela. Comecei a rir.
– A menina mora comigo. Deixei o telefone na bolsa dela, mas ela bebeu demais, ficou mal e foi embora mais cedo. Passou a noite na delegacia e teve que pagar multa por desordem pública. Só foi solta quando a polícia conseguiu falar comigo. E ela não é chinesa. Nasceu no Vietnã, mas foi adotada por franceses. E até agora não faz a menor ideia do que aconteceu.
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