Categories: Curiosidades

Eu, a bêbada e a Garda

Como eu me envolvi com a polícia com apenas algumas semanas na Irlanda . Créditos: Pixabay.

– Senhor, me diga seu nome, telefone e endereço.

O tom intimidador do policial me deixou um pouco assustado. Era apenas o meu terceiro fim de semana na Irlanda e eu nem havia solicitado o visto de permanência no país. O paramédico até interveio a meu favor, mas não teve jeito. O moço de quepe anotou tudo em um pequeno caderno e pediu para que entrasse em contato na segunda-feira. Pela primeira vez na vida eu era responsável pela prisão de alguém e, mesmo assim, fui para casa dando gargalhadas.

Meu telefone havia tocado uma hora antes e identificara uma ligação de uma colega de sala. “Estranho”. Era final de balada e comíamos no Mc Donald’s na esperança de amenizar a ressaca do dia seguinte. Atendi chamando-a pelo nome. Do outro lado da linha, uma outra garota, em inglês, perguntava se eu conhecia a dona daquele celular.

– Ela está passando mal em frente a um pub. Você pode ajudá-la?

Continua após a publicidade

As duas irlandesas, de tão preocupadas, foram nos buscar. No caminho, explicaram que tentaram ligar para diversos números que estavam gravados no telefone, mas que eu havia sido o único a atender.

– Obrigado, obrigado, obrigado. Muito obrigado mesmo por terem me ligado.

A menina estava sentada na calçada, de cabeça baixa, encolhida, praticamente inconsciente. O chão completamente sujo tornava a cena ainda mais deprimente. Solidárias, as pessoas em volta ofereciam água. Em vão. Ela não se mexia.

– Ei, sou eu! O Leandro. Você está bem? Posso te levar para casa? Prefere ir para o hospital? Ei, ei, ei…

A melhor resposta que obtive foi um leve grunhido. A ambulância estacionou atrás de mim quando eu agradecia às irlandesas pela enésima vez. Elas haviam ligado para o 192 daqui. O paramédico – com cara de “lá vamos nos outra vez” – começou a sacudi-la. Ele tentou de tudo: gritou pelo nome, bateu palma, chacoalhou-a pelos ombros, assobiou. Finalmente ele segurou a nuca da garota e levantou a sua cabeça.

– NÃO É ELA! NÃO É ELA!

Imediatamente mandei o meu colega calar à boca.

– Calma! Vamos ver melhor.
– Ver melhor? Tá louco? É óbvio que não é ela. Cadê os óculos?
– Ela deve ter os deixado em casa.
– Cara, não é ela!
– Peraê. Vamos ver de novo e…. NÃO É ELA! NÃO É ELA! NÃO É ELA!

A polícia chegou dois minutos depois. O guarda revirou a bolsa da menina e encontrou outro telefone e os documentos de uma francesa. Mas ela parecia chinesa. De repente, ele começou a me fazer perguntas.

– Você tem certeza de que ela é brasileira?
– Não.
– Mas você disse que ela era sua amiga.
– A dona do celular que é a minha amiga.
– Você já viu essa menina na vida?
– Não.
– Então por qual motivo ela estaria com o celular da sua amiga?
– Não sei.
– Como você chegou aqui? O que faz na Irlanda? Onde mora? Quando volta pro Brasil? Estuda? Trabalha? Onde estava? Conhece as irlandesas que te ligaram? Blá, blá, blá…

Até mostrei a foto da dona do celular, mas o policial não estava muito disposto a confiar em mim. Usando o aparelho, ligou para o meu telefone umas três vezes. Impaciente, começou a interrogar a garota desconhecida.

– Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você? Qual o seu nome? Quem é você?

A menina nem se mexeu. A noite terminou com ela passeando de viatura até a delegacia.

Assim que eu cheguei em casa, mandei uma mensagem para a minha amiga pelo Facebook:

“Acho que roubaram o teu celular ontem à noite. É uma longa história. A policia está com o aparelho e pediu para entrar em contato. A ladra foi presa. Bjs”.

Acordei no dia seguinte com o celular tocando. Era ela. Comecei a rir.

– A menina mora comigo. Deixei o telefone na bolsa dela, mas ela bebeu demais, ficou mal e foi embora mais cedo. Passou a noite na delegacia e teve que pagar multa por desordem pública. Só foi solta quando a polícia conseguiu falar comigo. E ela não é chinesa. Nasceu no Vietnã, mas foi adotada por franceses. E até agora não faz a menor ideia do que aconteceu.

Nem eu…

Leandro Mota

Jornalista desde 2005. Trabalhou por oito anos na Rádio CBN. Fanático por futebol, cobriu duas Olimpíadas (2008 e 2012), uma Copa do Mundo (2010) e outros eventos esportivos. Em 2009, ganhou o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos por uma série de reportagens sobre preconceito e xenofobia na Europa. Certo dia, bebeu demais e acordou em Dublin. Ainda não descobriu como voltar para o Brasil.

Recent Posts

Dublin registra 11 dias consecutivos sem sol, igualando recorde de 1969

A capital da Irlanda, Dublin, enfrentou recentemente um período de 11 dias consecutivos sem a…

20 de fevereiro de 2025

‘Ainda Estou Aqui’ na Irlanda: crítica irlandesa enaltece filme brasileiro

O filme brasileiro Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, estreou nos cinemas da Irlanda…

19 de fevereiro de 2025

Intercâmbio agrícola: como estudar e trabalhar em fazendas no exterior

Se morar fora para aprender um novo idioma já é bom, imagine como pode ser…

19 de fevereiro de 2025

Feira gratuita de universidades em Dublin vai auxiliar intercambistas na escolha de cursos

No dia 25 de abril de 2025, Dublin recebe mais uma edição da Ireland University…

19 de fevereiro de 2025

Nova Zelândia: curiosidades sobre o país do Senhor dos Anéis

Conhecer a cultura de um país é imprescindível para visitá-lo e aproveitá-lo da melhor forma…

19 de fevereiro de 2025

Intercâmbio High School: como fazer o ensino médio no exterior

O texto de hoje é para você que ainda tem dúvidas sobre o intercâmbio High…

18 de fevereiro de 2025