Muito já se falou sobre trabalhos alternativos na Irlanda, inclusive o Rickshaw, o transporte de curta distância, realizado de bike pelas noites de Dublin. Mas como seria conhecer mais sobre esse serviço por uma ótica feminina? Há um bom tempo, as mulheres intercambistas estão entrando nesse mercado e enfrentando, lado a lado com os homens, as duras noites geladas de Dublin. A convidada de hoje é a Roberta Kelly Dias, paulistana de 35 anos, formada em publicidade e propaganda e agora, também, uma Rickshaw girl.
Por Roberta Kelly Dias
Colaboração: Fabiano de Araújo
Quando cheguei à Dublin, minha ideia inicial era trabalhar com o que eu fazia em São Paulo, que é dar aulas de dança. Porém, já nas primeiras semanas percebi que não seria nada fácil. A maioria das escolas de dança que respondia meus e-mails não demonstrava muito interesse, dizendo quase sempre estar com a grade de professores completa. Tive então de partir para um plano B, mas percebi que eu não tinha nenhum outro plano.
Como a maioria dos brasileiros descobre antes de vir para a Irlanda, a fonte de renda da maioria dos intercambistas gira em torno dos empregos que não exigem uma formação: assistentes de café, bares e restaurantes, recepcionistas, limpeza, atendentes de cozinha e portaria, babás, cuidadores de idosos, entre outros. Cheguei a elaborar alguns currículos para algumas dessas funções, mas para falar a verdade, não conseguia me enxergar fazendo nenhuma delas.
Foi quando descobri, através de um amigo, a profissão de Rickshaw, o famoso triciclo que leva turistas em curtas distâncias pelas ruas movimentadas de Dublin. O frio aqui é algo com que eu nunca lidei antes. Ficava horrorizada com o fato de meu amigo sair pra trabalhar 21 ou 22 horas, pra varar a madrugada trabalhando, enquanto eu só queria continuar embaixo das cobertas, sem coragem de levantar sequer para pegar um chá.
Mas a necessidade falou mais alto e eu precisava trabalhar. Encorajada por ele, comecei a pensar no Rickshaw como uma possível fonte de renda. Embora tenha praticado exercícios a minha vida toda, não parecia ser nada fácil pedalar horas a fio com um peso de três pessoas atrás. Fora isso, eu também teria que me acostumar a trabalhar de madrugada, quando o frio é maior, a dormir menos, a lidar com os engraçadinhos e com as dores nas pernas e costas – e, o principal, a estar sozinha, à mercê de desconhecidos pelas ruas. Nunca tive medo dos grandes desafios e até como uma forma de testar a mim mesma, resolvi encarar.
Quando comecei a procurar pelos donos das garagens que alugam as bikes semanalmente aos drivers, eu não fazia ideia do que estava fazendo, mas logo meu telefone estava repleto de contatos. Há uma longa fila de espera. Muitos brasileiros, quase todos homens, assim que chegam em Dublin procuram o Rickshaw. Reza a lenda de que é o trabalho mais bem remunerado que o brazuca pode ter aqui.
Continuei a saga pela bike, até que um dia um responsável de uma das garagens me avisou de uma desistência. Disse que seria necessário eu ir lá imediatamente fazer o treinamento. Faltei na aula de inglês e fiz tudo que deveria: treinamento, pagamento de aluguel e depósito. Comecei a trabalhar naquela mesma noite. Era uma sexta-feira e eu estava apavorada. Não estava segura, não conhecia lugar algum e sentia um peso enorme, físico e psicológico. Me dei conta da responsabilidade que aquilo demandava logo na primeira lift, o nome que damos ao serviço oferecido, algo como “carona”. Descobri a amizade dos outros drivers, a compreensão das clientes com minha falta de jeito e o terror de ser enquadrada pela polícia.
Só quem morou ou mora fora, sem nenhum amigo próximo ou parente, sabe o que é se sentir completamente só, mesmo rodeado de pessoas. Eu me senti assim no primeiro mês em Dublin. Hoje minha realidade é outra, já que a maioria dos drivers é brasileira. Você percebe e presencia o elo de amizade que liga a galera do Rickshaw. O trabalho é muito pesado para uma mulher e talvez, se eu não tivesse sido amparada por eles, não estaria escrevendo esta história hoje.
É um ajudando o outro o tempo todo, avisando sobre os eventos, as principais festas, onde a polícia está, emprestando ferramentas, consertando bike na rua e passando o tempo ocioso com risadas e conversa fiada. É como se eu tivesse descoberto um mundo novo e caloroso na madrugada fria de Dublin.
Em menos de 1 mês como Rickshaw, tive a oportunidade de reconhecer 4 tipos de lift. A primeira, que eu chamo de “passageiro”, é aquele homem ou mulher que provavelmente já está habituado a pegar a bike, que senta no banco já falando o local e, ao chegar ao destino, perguntará o preço rápido, rasteiro e impessoal.
O outro tipo é o “cliente”, aquele que logo nos primeiros segundos vai perguntar o seu nome e de onde você é, e assim que você falar Brasil, ele vai dizer “Buenas noches” e você vai rir concordando para não contrariá-lo. No trajeto, ele vai contar um pouco a história dele e você um pouco da sua. No final, ele vai elogiar seu serviço e talvez te dê uma gorjeta bacana. Tenho a felicidade de dizer que essa categoria é a com que eu mais trabalhei nesse curto tempo. Foi gratificante ouvir que sou uma batalhadora adorável, que represento uma nova classe de mulher dos tempos modernos ou ter ouvido de um senhor italiano que gostaria que sua filha, quando crescesse, fosse corajosa como eu.
O terceiro tipo foi carinhosamente apelidado por mim de “drunk”. Não é de hoje que se comenta o quanto bebe o povo irlandês. Nessa categoria são as pessoas divertidas que não sentem frio, que cantam o tempo todo, fazem selfies com você enquanto você está dirigindo, se divertem com o “Hi Five” – o ato de bater a mão na mão de outra pessoa. Os drunks adoram abraçar, tirar fotos e fazer “Hi Five”, e na hora de pagar sempre dão trabalho: ou porque reclamam do preço, ou porque não conseguem achar o dinheiro. É a hora que se recebe muitas moedas – mas antes assim do que não receber nada.
Isso nos leva para quarta categoria: o “caloteiro”. Eles estão por toda a parte e não se engane pela aparência ou pela quantidade de álcool no sangue deles. É aquele tipo que sairá correndo, aproveitando, por exemplo, a oportunidade de um farol fechado ou, quando chegar ao destino, ele simplesmente sairá da bike e andará, como se você não existisse. A desculpa geralmente é “pensei que fosse de graça” ou “não tenho dinheiro”.
Comigo isso já aconteceu duas vezes: na primeira, foram 3 moças muito bem vestidas que discordaram do meu preço e “preferiram não pagar nada”, entrando numa lanchonete e me deixando para trás de boca aberta. E na segunda, um casal que resolveu apenas dizer que não tinha dinheiro. Nesse caso, fui mais esperta. Fingi chamar em meu auxílio alguns amigos drivers que estavam por perto. Pressentindo a ameaça, o rapaz “encontrou o dinheiro” rapidamente na carteira, dizendo que era tudo um grande mal entendido. Me pediu desculpas e pagou com gorjeta.
É claro que uma mulher trabalhando à noite, carregando pessoas em uma bicicleta, estará exposta às cantadas. Além dos calotes, que levamos mais que os homens, temos de aturar os engraçadinhos que, bêbados ou não, infernizam o nosso trabalho. Comigo, as cantadas partem mais dos homens que estão circulando na rua. As propostas em si, por sua vez, vêm diretamente das lifts – desde convites para drinks, para subidas rápidas aos apartamentos, ou o clássico “se eu te pagar mais, o que mais você pode fazer por mim?”
Em um caso específico, um rapaz sozinho, ao descer, disse que só me pagaria se eu desse um beijo na boca dele. Resolvi mandar ele e o dinheiro para um lugar o qual não posso citar neste artigo. Antes que eu pudesse subir na bike, ele atirou todas as moedas na minha cara, típica gentileza de alguns irlandeses. No fim, a gente acaba se acostumando. Além dos pervertidos, temos de aturar as brincadeiras sem graça, pessoas que gritam o tempo todo pra você ir mais rápido, cutucam suas costas, dizem que o local é perto, quando não é, e não pagam a mais por isso. Pessoas que sentam na bike e “chicoteam” as suas costas ou nádegas, como se você fosse um escravo ou um cavalo. Claro que não é sempre que isso acontece, mas é preciso estar preparado, pois esses são alguns tipos de sapos que talvez tenhamos de engolir.
Não dá para falar de Rickshaw sem falar da Garda. Para quem não sabe, Garda é o nome dado à polícia aqui na Irlanda. Em linhas resumidas, podemos dizer que a Garda nos detesta. O nosso trabalho é autônomo, considerado uma forma ilícita de se ganhar dinheiro, sem pagar as devidas taxas que o governo cobra em um trabalho regularizado.
Esse, talvez, seja o principal motivo da perseguição que sofre o Rickshaw – mas não é o único. Muitos oficiais são xenófobos e não fazem questão nenhuma de esconder. Em meu primeiro dia, tive o desprazer de ter contato com a Garda. Foi um dia tumultuado para todos os drivers, quase uma operação limpeza, para que, ao menos naquela noite, o maior número possível de Rickshaws saíssem da rua.
Eu estava dentro da rua, na mão certa, com as luzes ligadas, voltando da minha primeira lift, quando o casal de policiais me abordou, já aos berros, pedindo para eu descer da bike e vasculhando o baú, embaixo do assento. Pediram meu GNIB ou passaporte e eu me dei conta de que não havia levado nem um, nem outro – um daqueles erros estúpidos que cometemos na vida.
Desse momento em diante, ouvi atrocidades dos policiais – entendi só metade delas. Tentava falar com eles, mas o inglês parecia ter se evaporado da minha cabeça. A policial feminina dizia que eu era uma nojenta, que deveria voltar para meu país e que eu seria detida até que alguém apresentasse meu documento.
Fui sendo conduzida até o posto policial, com a bike ao lado do corpo, pelos 30 minutos mais longos da minha vida. Antes de chegarmos lá, consegui que um amigo enviasse pelo meu celular a foto do meu passaporte. Fui liberada com ordens de não voltar mais pra rua. Estacionando a bike na garagem, aos prantos, prometi que nunca mais colocaria as mãos em um Rickshaw. A promessa, porém, durou só 24 horas. No dia seguinte, com a cabeça fria e o passaporte na bolsa, voltei a trabalhar.
É o melhor trabalho para o brasileiro ganhar dinheiro aqui? Provavelmente sim. Digo “provavelmente” porque ainda não tenho experiência suficiente, não conheço locais o suficiente, não sei cobrar direito e não sou tão rápida nas ruas.
Quando se alcança essas habilidades e se trabalha direitinho, é possível fazer do Rickshaw sua fonte de renda. Eu, mesmo sendo iniciante, não estou indo mal, mesmo com todos os contratempos corriqueiros, barras pesadas com a polícia e o corpo moído.
Ainda que exaustivo, o serviço oferecido com a típica simpatia do brasileiro e as experiências compartilhadas entre os colegas, fazem do Rickshaw um trabalho honroso e muito digno para nós, mulheres. Me alegro em dizer que também não sou a única. Mais uma vez, estamos exercendo um trabalho que, aos olhos dos outros, seria de exclusividade masculina. Se você tem interesse em entrar nesse mercado de trabalho assim que desembarcar na Irlanda para o seu intercâmbio, esteja certa que precisará ser paciente, persistente, e que terá de abandonar completamente sua zona de conforto pra se arriscar, assim como fazemos todas as noites.
A série Meu Intercâmbio conta com a colaboração do repórter Fabiano Araújo e tem o objetivo de dar oportunidade a estudantes que estão vivendo a experiência de intercâmbio na Irlanda, de contar suas histórias, alegrias e perrengues como intercambistas. Se você também quer compartilhar como tem sido a sua nova vida desse lado do globo, basta entrar em contato com: jornalismo@edublin.com.br
Revisado por Tarcísio Junior
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